Pessoal


Desde a infância, desenvolvi um gosto especial pelo desenho. E foram incontáveis tardes de aventuras, com naves espaciais em cenários alienígenas, robôs com direito a todo tipo de acessório cibernético, caricaturas grotescas, flexíveis, buscando os limites da carne e do humor, animais, várias historinhas curtas e muitas intermináveis, devidamente guardadas em pastinhas coloridas de plástico. Um micro-universo na ponta dos lápis, crayons e canetas nanquim de arquiteto que eu ganhei de presente do meu querido pai. As folhas se multiplicavam e se espalhavam na mesa, como se quisessem demarcar seu território. Da janela, uma lufada de vento no final do dia levantava rascunhos de cavaleiros medievais no ar, rolava insetos de aquarela num mar de texturas de lápis de cor. Um caderno espiral com super-heróis me acompanhava onde quer que eu fosse, pois era necessário anotar, pegar referências, idéias para os super-poderes e seus nomes e identidades secretas. Uniformes multicoloridos que dariam dores de cabeça em qualquer costureira eram catalogados, pintados de várias cores, ordenados pelos mocinhos e vilões. Muitas vezes eu tinha o personagem pronto, batizava, decidia como seria sua personalidade, mas mudava de idéia logo em seguida.


Minha mãe Suelly sempre ficava impressionada e muito feliz com o que eu estava produzindo. Num mundo tomado pela malícia, violência e ganância, ela era um oásis de tranquilidade, harmonia e serenidade. Dela e de minha avó materna Anah eu herdei principalmente a paixão pelos livros e o amor pelas outras pessoas. Elas mostraram um estilo de vida onde não existiam racismo, preconceitos ou interesses ocultos: estava tudo iluminado pela verdade. Mesmo sabendo que o código de sobrevivência dos humanos é desconcertante e que o Bem e o Mal se misturam de modo tão intrincado quanto nossa imaginação ou conceitos podem proporcionar, aprendi a trilhar o caminho da luz - o que me traz muita alegria e realização. Lógico que tropeço às vezes até hoje, me assusto e estou sempre tentando entender vários enigmas que surgem. Devo a essas duas mulheres "alienígenas" um espírito terreno moldado pela esperança e pelo otimismo. A criança que habita o meu ser nunca vai envelhecer ou ficar amargurada. É uma promessa pessoal que eu me fiz e que pretendo jamais quebrar. É um pacto de vida.


Meu avô foi testemunha histórica de um conflito trágico. Era piloto-comandante do grupo de aviadores "Senta Púa" na campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial. Era um major organizado, inteligente, extremamente dedicado e disciplinado, era de uma honestidade surpreendente. Jamais esquecerei do seu olhar carinhoso e a vontade de me agradar sempre. Depois dos horrores da Guerra, ele se apegou a todos que o cercavam, protegendo, ensinando e trazendo felicidade. 


Faz pouco tempo eu soube de uma coisa que vovô Ary fez durante sua estada na Itália durante o confronto mundial. Perto da base brasileira existia um mosteiro onde freiras socorriam e cuidavam dos feridos (não importando a nacionalidade) e meu vô ajudava com recolhimento do soldo dos companheiros, mandava suprimentos médicos, alimentos e despendia um longo tempo cuidando de toda essa organização médica que foi montada. Eu soube que muitos espólios de guerra foram pegos por soldados, mas meu avô foi resoluto, fiel ao seu país e seus valores altíssimos e lá permaneceu prestando caridade a quem nem conhecia, numa demonstração de amor ao próximo que me trouxeram lágrimas aos olhos quando eu soube. Atualmente existe um memorial a ele nesse mosteiro. O detalhe é que nenhum de nós da família tinha conhecimento destes eventos, pois meu vô Ary fez a questão de jamais contar. Isso me lembra uma passagem da Bíblia que diz que "o que a mão direita faz a mão esquerda não precisa saber." 

Enfrentei um período extremamente difícil quando ele faleceu. Era um dos "Imortais" da minha família - juntamente com minha mãe, meu pai e minha avó materna. Eu estava ao seu lado em seus últimos momentos, em seu apartamento em Copacabana. Seu olhar carinhoso, terno, está gravado em minha alma para sempre. A partir de sua morte, eu saí da adolescência e entrei no estranho e complicado mundo dos adultos. Não tinha mais como voltar e eu senti isso claramente em todo o meu ser.

Na oficina improvisada do meu pai eu pegava recortes de madeira e construía criaturas, bichinhos, bolava projetos incríveis, ficava com dedos cheios de cola e serragem, suado, extremamente feliz e realizado. Papai me permitia mexer em tudo, desde que eu arrumasse e pedisse permissão e ajuda caso quisesse usar alguma ferramenta ou material diferente. Isso me deu um senso de cuidado e pesquisa formidáveis e evitou que eu colocasse, por exemplo, o dedinho na serra tico-tico (a maior preocupação de papai). Este era o meu pequeno mundo particular, onde eu podia capturar idéias sem me dar conta da passagem do tempo. Essa fase eu nunca mais esqueci, tanto que carrego esse frescor e encantamento comigo até hoje.


Meu pai, um espírito inesquecível e genial, mostrou na prática que somos seres que chegaram ao atual desenvolvimento devido única e exclusivamente à fome de conhecimento e a persistência da memória. O humano é curioso, aprende todas as facetas de uma questão e memoriza a solução para passar adiante aos seus semelhantes e descendentes. Henrique Briggs era o exemplo vivo e espetacular de que isso acontecia no dia a dia de nossas vidas, nos mais simples afazeres dele.

Papai conseguia construir qualquer coisa com madeira balsa. O pequeno quarto de empregada nos fundos do apartamento era a fantástica fábrica de idéias. As miniaturas de casas impressionavam. Vinham com cadeiras, mesinha e lareira com uma estante de livros em cima. Cabeças de leão, elefante e outros bichinhos de brinquedo meus eram colados na parede da maquete após um rápido decapitamento cerimonial em nome da arte. Porta - Bíblia, prateleiras... se o material era madeira, ele fazia qualquer coisa. Os aviões, os grandes xodós de papai, só faltavam voar. Meu rolimã foi pintado de vermelho e decorado com o número cinco em homenagem ao carro do Speed Racer.

Papai me impressionou muito quando certa vez estudou avidamente manuais de próteses dentárias. Ele simplesmente teve um acesso de raiva por causa dos preços altíssimos das dentaduras do meu avô paterno e resolveu fazer ele mesmo. O estilo americano "Do Yourself" com Mister Henrique Briggs sempre dava certo!


Uma vez ele inventou e construiu um brinquedo original: um computador de madeira. Cartões com perguntas variadas vinham com quatro respostas, estas sendo representadas cada uma por uma cor diferente. Inserindo o cartão de pergunta, a luz correspondente da resposta acendia. Parecia um semáforo de trânsito, só que com quatro lâmpadas. O nível de acabamento e detalhes das peças era tão bom que meus amigos pensavam que o brinquedo tinha sido comprado em loja.

Ver filmes era uma diversão só. Até hoje me lembro da primeira vez em que assisti Guerra nas Estrelas no cinema com papai. Num certo momento paramos de comer pipoca... sentimos arrepios que iam até o topo da cabeça... Mesmo com apenas 7 aninhos de idade eu fui seduzido pela magia do filme. Ele estava eufórico, radiante! Parecia uma matraca, não parava de falar, de rir e imitar o Darth Vader no meio da rua... Disse que lembrava seus tempos de matinês de Buck Rogers e Flash Gordon. Quando exibiram Contatos Imediatos de Terceiro Grau na televisão, numa madrugada fria de sexta para sábado, estávamos os dois ansiosos, com os olhos grudados na telinha, comendo sanduíche de frango e enrolados em cobertores. Eu estava gelado de frio e de medo. Estava paralisado de curiosidade e fascinação. Depois de Contatos conversamos muito sobre vida extraterrena, outros mundos e civilizações mais avançadas do que nós cruzando o espaço em busca de conhecimento.


Foi quando num aniversário caiu na minha mão o livro "Cosmos" de Carl Sagan. Era presente de minha mãe. Papai sorria vendo minha avidez em ler tudo num dia. Lógico que não consegui, mas inundei o coitado com perguntas diversas. A série baseada no livro estava passando de manhã cedinho e era tradicional eu acordar às 6 da manhã para assistir o programa às 7 horas, todos os sábados. A Ciência tinha surgido em minha vida. Eu estava ardendo em curiosidade, vários horizontes estavam se abrindo.

Passamos vários finais de semana escrevendo textos, historinhas e narrações. Era um clima gostoso de rádio-teatro particular no quarto de papai. A trilha sonora vinha de um rádio grandão dos anos setenta. Pescávamos músicas sintonizando vários canais nas estações convencionais. Pra complementar, a vitrolinha vermelha que eu tinha ganhado do meu avô, que acabou sendo uma mão na roda. Segurando com o dedo os discos,distorcíamos o som para fazer efeitos fantasmagóricos. E não só isso, a vitrolinha era pequenininha mesmo, quase não ocupava espaço na nossa mesa abarrotada de fitas, discos, textos, lápis e quitutes da minha avó. Nosso empoeirado gravador preto foi o pau pra toda obra. Jamais falhou. Testemunha ocular...ahh...auditiva das nossas loucuras.

Nossa programação era variada e engraçadíssima. A Rádio Portuguesa PRK-5, com papai fazendo sua imortal criação, o intrépido locutor, repórter, apresentador e faz tudo Joaquim Das Calças era o carro-chefe.

Certa vez, irradiando do além-mar, Das Calças narrava, debaixo de um sol escaldante, as escavações da equipe arqueológica portuguesa em busca do corpo do célebre filósofo grego Diógenes. Em plantões urgentes e extraordinários, interrompendo músicas, vinhetas de patrocinadores fictícios e agendas culturais com os últimos lançamentos do cinema de Roliúdi na santa terrinha (Psicose virou O Filho que Era a Mãe), Das Calças prosseguia implacável, até chegar ao clímax da transmissão :

"Foram descobertos três esquelectos! Três esquelectos! E... Segundo a nota dus nossos cientistas; todos os três pertenciam ao célebre e runumado filósofo grego Diógenes... O prumeiro era de quando iele era pequetitito, o sugundo quando era rapazola e o turceiro quando iele era maiorzito..."

No final de 1986, meu pai faleceu e eu me despedi do meu melhor amigo.

Mas sei que ele não está longe.

Ele vive dentro de mim...


Sou casado desde 2003 com minha melhor amiga, companheira e namorada, Fran Briggs, que me protege, cuida de mim, me orienta e me ensina muitas coisas. Ela é inteligente, misericordiosa, dona de um humor delicioso. Seu coração transborda bondade e a belíssima vontade natural de fazer o que é certo, de ser justa e correta. Íntegra, honesta e nobre em suas atitudes. 


Sou muito grato a Deus por ter colocado ela e Maria, minha sogra, em meu caminho. Maria é um exemplo de perseverança, de força de vontade. Ela é uma pessoa que se entrega espiritualmente de corpo e alma para ajudar os outros de forma altruísta.  Moramos juntos em harmonia, nos divertindo, nos conhecendo cada dia mais e tendo um profundo respeito um pelo outro. Junto com minha querida mãe Suelly, que de vez em quando vem trazer a alegria de sua presença nos visitando pra bater papo e ver filmes e se divertir aqui em casa, tenho esses três anjos em minha família e em minha vida.


Ah sim, claro, não poderia esquecer do meu irmãozinho, o fofinho do Falcor, um dos gatinhos mais inteligentes e carinhosos que eu já conheci, que é o menino levado da casa, sempre nos fazendo dar muitas risadas de seu jeitinho único. Falcor tem uma característica que eu admiro: mesmo levando algumas broncas por conta de suas travessuras de criança, ele nunca deixa de demonstrar sempre seu amor incondicional pela gente. É um chamego só.